@palivre

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

conta outra #12


MARCHA SOLDADO, CABEÇA DE PAPEL
imagem de autor desconhecido



"Amanhã vai ser outro dia." A canção de Chico reconfirma que nenhum desespero é necessário e que a realidade vai apresentar de bom grado todas as inevitabilidades. Hoje voltei ao maravilhoso mundo daquela clínica de segurança do trabalho, mas não me atrasei. Cheguei dentro do horário combinado e fiz questão de esperar de pé o momento da tão esperada consulta fatal, quero dizer, final.

Não demorou para me atenderem. Ficou notório que a senhora adoro-ser-madame-porque-sim-mas-é-foda-não-ser-comida-por-ninguém queria me ver longe dali o quanto antes. Porém, nada de benevolência. Ela não ia me deixar sair impune da situação. Na ira dos seus olhos eu vi a imagem do inferno. O demônio escolheu aquela íris de palco e dançou para mim um belo espetáculo, que foi terminado subitamente quando a atendente comunicou que minha hora havia chegado.

Me recompus daquela apresentação alucinante na qual eu estava completamente imerso. Entro na sala e encontro o médico-chefe numa mesa de escola, sentado numa cadeira do mesmo estilo. Sobre a mesa vários papéis xerocados, aquela burocracia onde entram as devidas anotações respeitantes ao trâmite do procedimento segundo as normas diretivas.

Me acomodo na cadeira que me esperava e me sinto de volta à escola. Mas dessa vez alternando entre o papel de professor e aluno. Vejo azul nos olhos do doutor, e me pego pensando em como a miscigenação pluralizou nosso mundo, diversificando as raças e tudo mais. Quando me recomponho, pergunto seu nome. Não era Fritz como entendi ontem, mas sim um derivado, parecido, que por algum motivo desconhecido não vai ser citado aqui.

Ele explicou que eu estava ali porque o outro médico relatou que faço uso de substâncias ilícitas, e me questionou sobre isso. Respondi que já fiz e faria novamente. Ele então disse que isso significa que faço uso e devo ser encaminhado para um tratamento antes de ser diagnosticado como apto para o desempenho de uma futura função. Falei que ter feito ou vir a fazer não é estar fazendo, que no presente, naquele exato momento, por exemplo, eu não estava.

Ele falou que de toda forma tal prática vai de encontro a lei, que a empresa deveria ser notificada e esclarecida sobre minha saúde. Ao falar em lei, abriu uma brecha para discutir outras coisas. Aproveitei e explanei um pouco sobre o caminho do meio, as relatividades, a consciência, questionei o obedecer por obedecer, toquei no antiquadismo da lei e ainda descorri superficialmente sobre a possibilidade que temos de tomar nossas próprias decisões em situações onde o julgamento alheio é injusto.

Para não perder o costume de ir um pouco além do necessário, perguntei se ele seria então aquele soldado que ouve a ordem do general para matar um prisioneiro de guerra e simplesmente puxa o gatilho, sem reflexões, sentimentos, qualquer rastro de humanidade ou autonomia. "Aí eu provavelmente abandonaria", ele respondeu, confessando já ter sido militar, mas posteriomente mudando de carreira. "Ainda bem, aquele lugar não é para ninguém", eu aproveitei e disse, bem num tom de "sorte sua, foi por pouco".

Admiti que nunca fiz parte de nenhuma corporação militar e me sinto muito bem por isso. Então, quando eu já estava certo de que não haveria mais surpresas, veio a notícia: ele é professor. Não um simples professor, mas um professor de filosofia. O médico responsável por me avaliar é um filósofo. Nato ou não, mas é, pelo menos academicamente. Revelou isso ao meu convidar assim do nada, após escutar tudo que eu disse, para uma aula que ele iria dar sobre filosofia oriental.

Minha cabeça deu um nó por um instante, ainda não estava pronto pra compreender aquilo. “Eu já estive na Índia”, ele complementou. Então fiquei mais intrigado. Como um professor de filosofia que estuda a filosofia oriental se dispõe a seguir a lei sem pensar nas consequências? Que buscador é esse, que baixa a cabeça diante de uma ordem e acata sem questionar?

Conversamos mais um pouco e recebi das suas mãos um documento declarando minha inaptidão, pelo uso de substâncias psicoativas e ilícitas. Falei que entendia que ele precisava seguir um protocolo, mas que não seria o mais correto da parte dele, porque seguir um protolo nesse caso seria acima de tudo prejudicar alguém. E ele tinha nas mãos a possibilidade de fazer diferente. Mas não adiantou, ele não caiu no meu blablablá.

Resumindo, fiquei encrencado: tal diagnóstico me impedia de receber os benefícios do seguro-desemprego e talvez alguns outros. Tive que arcar com o custo de procurar outra empresa de segurança do trabalho para evitar complicações maiores. Me diverti relendo o diagnóstico mal-intencionado, até que decidir tocar fogo nele. Parece não ter sido uma boa idéia revelar minha realidade. Seria mesmo a mentira necessária para lidar com os hipócritas? Ou os frutos da verdade ainda estão por ser colhidos?


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