@palivre

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

conta outra #11


VOCÊ USA SUBSTÂNCIAS ILÍCITAS
imagem de autor desconhecido



Recebo da empresa a notícia de que fui demitido. Passada a festa de comemoração, recebo a informação de que devo realizar meu exame demissional. O lugar indicado para a consulta é uma clínica de medicina do trabalho. Avisam-me que o horário de exames é entre meio-dia e uma da tarde.

Quando chego ao local combinado uma funcionária já está fechando a porta para encerrar, me esquivo dela e entro. Por pouco não era atendido. Estou atrasado dez minutos. Da recepção, a dona da empresa, pelo menos parece ser, fala: “E você, o que quer?” Respondo que estou ali para fazer um exame demissional.

Ela se volta pra mim e diz: “Você entrou fazendo umas curvas meio estranhas.” Se referindo a minha atitude de não ir diretamente à recepção quando cheguei. Eu ainda estava me situando no lugar, compreendendo o ambiente. Permaneço calado e escuto. Ela, mostrando fazer pouco caso do meu caso, prossegue com um irritante: “Não sei se vai dar pra você ser atendido, encerramos a uma da tarde.”

Escuto e não respondo, percebendo que qualquer falar além da conta colocaria em risco minha certeza de ser atendido. Depois de outras perguntas burocráticas que fazem parte do processo, como quem sou, de que empresa venho e qual é meu erregê, aguardo um pouco mais.

Enquanto isso assisto, de camarote, à patroa da clínica sendo demasiadamente enfática, irredutível, controladora e hostil em assuntos corriqueiros ao falar com suas funcionárias. Todas mulheres jovens, ainda inexperientes, com exceção de uma, que percebo estar ali por pura necessidade e nada mais. Lugar deprimente, antiquado, desagradável. Um retrato perfeito da tristeza depressiva que são a maior parte das corporações.

Eis que me chamam para entrar, então me dirijo para sala do médico. Quando entro, a senhora dona da clínica está falando com o doutor enquanto um paciente aguarda o fim da consulta. Sento-me num dos dois assentos vagos, a certa distância da mesa em que acontece o atendimento, disposto a aguardar um pouco mais.

A dona chama meu nome, olhando para fora da sala. Chama novamente. E eu calado lá dentro, pensando comigo que não pode ser possível que essa santa senhora da adiposidade não esteja me vendo porque seu tamanho descomunal oculta tudo ao seu redor ou porque seu egocentrismo faminto comeu todas as possibilidades dela perceber um palmo adiante do próprio nariz.

Para salvá-la do ridículo, o doutor chama ela, indicando que eu já estou lá dentro. Ela me manda ir pra fora da sala. Avisa que lá dentro não é o lugar de esperar, apesar dos bancos, mas sim no corredor, de pé, sem encostar na parede, pra não sujar. Estranho a complicação, porque esse exame geralmente é simples, nada demais. Tenho experiência neles. Já fiz tantos que perdi a conta.

Sai o paciente que estava sendo atendido. O doutor chama “o próximo". Entro, cumprimento-o, sento. Ele pergunta o que eu tenho. Eu digo que não tenho nada, que estou perfeitamente bem. Esclareço que é apenas um exame demissional.

No meio disso, percebo que a fala dele é meio enrolada, difícil de entender, o que me faz chegar à surpreendente conclusão de que ele vem de outro país. Aproveito a oportunidade e pergunto se ele é brasileiro. Ele acena a cabeça negativamente, e eu, ainda curioso, questiono de onde é. “Cabo Verde”, ele responde, com um sotaque mais puxado que o português da padaria.

Ele pergunta se eu fumo ou bebo. Digo que apenas eventualmente. Pergunta se uso drogas. Estranho a redundância: perguntar se uso drogas logo depois de eu afirmar que bebo e fumo eventualmente. Mas tudo bem, digo que não. Mentira monstruosa, mas parece o mais correto. O momento não parece o adequado para assumir publicamente que sou usuário de café, chocolate, chá verde e de todas as outras coisitas que a vida oferece e eu possa vir a me interessar.

Continuo com meu interrogatório atrevido, me excedendo na curiosidade, e pergunto se ele gosta do Brasil, se é melhor que a terra dele. O doutor fala que prefere lá. Estendo-me na simpatia e expansividade exagerada e falo que é a primeira vez que sou atendido por um doutor assim, referindo-me a sua estrangeiridade. Ele, talvez por uma vida inteira de preconceito, ou por estar vivendo isso aqui e agora em nosso país, ou seja lá qual for o motivo, me pergunta: “Assim como? Negro?”

Digo que não. Esclareço que estou me referindo a ser um médico de fora. Aproveito a oportunidade pra revelar, sem maldade nenhuma, que realmente nunca fui atendido por um médico negro. E que justamente por isso a experiência está sendo interessante, diferente, como tudo que é novo. Ele recebe o comentário de uma ótica meio negativa, falando que isso não é tão difícil de acontecer. O que deixa claro que ele desconhece bastante a realidade local.

Corto o papo para evitar qualquer desentendimento. Ele pede para eu esticar o braço, para medir a pressão e a pulsação. Continuo na mania e no prazer de falar, comentando que por pouco eu não era atendido por causa do meu atraso. Ele conclui a medição, se volta pra mim, indiferente ao que estou falando, e diz que preciso voltar amanhã. Afirma que devo me consultar com o doutor Fritz, ou qualquer nome parecido, que é o outro médico, coordenador.

Fico imediatamente indignado com o pedido, afinal já havia perdido todo meu horário de almoço para me deslocar até lá e resolver tudo isso. Ele volta a frisar que devo comparecer. Esclareço que voltar implica em perder tempo e dinheiro, que o exame demissional sempre é um consulta simples, rápida, sem maiores complicações, apenas para me liberar legalmente da empresa a que me vinculei. Ele segue completamente irredutível.

Então pergunto por que devo voltar amanhã, o que está errado, por que ele não coloca a sua assinatura naquele pedaço de papel e me libera. Ele, com a maior seriedade do mundo, fala calma e espaçadamente, no bom e velho português de Portugal: “Você usa substâncias ilícitas.”

Quase eu caio na risada. Sinto-me imediatamente como um personagem no meio da melhor das comédias. Porém um resquício de sensatez me faz achar mais correto tentar me conter. Continuo meu discurso, sem sorrisos, com indignação, ressaltando que isso é uma acusação, e inteiramente desnecessária.

Eis que a senhora dona do negócio, e da bunda mais horrível e gigantesca que já tive o desgosto de presenciar, entra na sala para ver o que está acontecendo. O médico reafirma a suposta necessidade de eu ter que voltar amanhã. A dona arrogante e intragável vem tentar explicar porque eu preciso voltar, porém eu a advirto que já entendi.

Volto-me pra ela na tentativa de explicar a desnecessidade do meu retorno por uma coisa tão ínfima, mas ela me corta, dizendo que devo escutá-la. Aproveito a situação e digo que ela está bem acostumada a sempre falar e fazer os outros ouvirem, e que nunca se dispõe a escutar nada, mas que dessa vez ia ser diferente.

Continuo a falar. E consigo me superar, quando digo que compartilhar esse momento com eles não está sendo nada agradável pra mim, que eu prefiro não estar ali, que quero acabar o quanto antes com isso e de preferência não precisar mais voltar. Quando termino meu dizer ela já está ao lado da porta, me mandando embora, com uma cara de quem não conseguiu me engolir apesar do tamanho apetite.

Levanto-me, olho para o médico e dou boa tarde. Com sinceridade suficiente para esconder minha ironia. Paro na porta, olho nos olhos da patroa e dou outro. Antes de sair pela porta da rua ainda desejo boa sorte para as funcionárias, pois são elas que vão ter que aturar essa família feliz. E assim a porta se fecha.


4 comentários:

  1. Adorei seu texto! Muito bom! Aprecio esse modo de escrever! Morri de rir! ;-)

    Bjks

    PS: Ah! sou amiga da Leticia Novaes!

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  2. Bem ... saiu, disse boa tarde ... e não voltou para ver a bunda mais apreciável do mundo dos demissionários, espero ... ou não ... talvez você devesse ter voltado exalando cheiro de água mineral ... carregando, no bolso, uma tampinha verde: Perrier, claro!

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  3. Muito bom!
    Tenho um episódio parecido passado num hospital escrito no meu blog. dá uma olhada.
    =)

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  4. Está na hora de postar em 2009. Namastê

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