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terça-feira, 15 de junho de 2010

musinematura #9


O INFINITO DE PÉ : ANDRÉ ABUJAMRA



André Abujamra percorreu uma boa estrada antes de chegar ao Infinito. Em 1985 ele estreou para o grande público, com Os Mulheres Negras. Composta por apenas dois integrantes, André e Maurício Pereira, a banda ficou conhecido por se intitular “a terceira menor big band do mundo”.

Depois veio o Karnak, um incrível projeto musical formado por 13 músicos e alguns artistas agregados. No Karnak, André Abujamra se aprofundou de uma vez por todas no experimentalismo musical. A banda apresentava esquetes e performances cômicas nos shows, usando o teatro como um elemento sempre presente no espetáculo. Lançaram o primeiro disco em 1995, e continuam fazendo apresentações esporádicas até aqui.

André também fez trabalhos no cinema e no teatro, assinando a produção musical de várias montagens teatrais e trilha sonora de alguns filmes. Chegou inclusive a ser ator no cinema, expondo novas facetas do seu talento artístico e participando de produções cinematográficas como Durval Discos.

Em 2004, André Abujamra lançou O Infinito De Pé, álbum que marcou o início da sua carreira solo. Uma nova fase marcada por um experimentalismo mais maduro e criativo, rendendo belos produtos. Composições simples, sinceras, com arranjos extremamente sofisticados. Nada mais do que idéias muito boas musicalizadas com extrema perfeição.

Olho Azul, Infinito De Pé, Nóis Eh Sampli, O Dah Ho, Essa Música Não Existe, Natureza, Tempo, Atoto, Namburuque, Palmeira Do Deserto, 70%, Elevador, Blue Rose / Senha Do Motim, Magina De Pipo e Curriculum. São 15 faixas que nos ensinam a assimilar o infinito de uma maneira singular.

Meu olho azul / é o negro diluído. / Racismo / é um rio poluído.” A primeira canção do álbum, Olho Azul, é um manifesto pela igualdade racial. É uma espécie de remédio para o preconceito e um brinde a beleza da diversidade. Para resolver a questão racial, André propõe uma solução realmente simples: “Limpa o rio, / limpa o mar / e viva / a diferença.”

Na faixa título do disco, Infinito De Pé, André extrapola em criatividade e ilustra mil formas de perceber o infinito. Em cada pequeno objeto, em cada mínima forma, lá está um pedaço do infinito de pé ou deitado, esperando ser cantado pela voz do artista. “O infinito é infinito. / O infinito é o amor. / O infinito nunca acaba / porque nunca começou.”

Nóis Eh Sampli é um rap gravado em parceria com Xis, rapper conhecido por suas composições falando de amor ou diversão, temas incomuns no rap brasileiro. É uma faixa diferente das outras do disco, mais nervosa, agitada, mas passa uma mensagem interessante. “Nóis eh sampli do mundo. Nóis eh sampli de deus.”

O Dah Ho é uma composição mais melódica. Seu som nos leva para um mundo oriental, de sabedorias, palácios, e muita beleza. “Nem tudo que aparenta ser, / é. / Tudo que é, / é.” O transporte é por conta do violino, que libera um som convidativo enquanto é arranhado de um lado pro outro. “Pensar é fácil, / fazer é difícil. / Sujar é fácil, / limpar é difícil. / Casar é fácil, regar é difícil. Gostar é fácil, amar é difícil.” O pianinho ao fundo complementa a marcação e até arrisca umas entradas mais fortes.

Em Essa Música Não Existe, faixa 5, André Abujamra relaciona tudo que não existe na face da Terra para dizer que a única coisa real é o amor. Um rock numa batida drum bass, com boas pegadas de guitarra.

“O tempo fica parado / é nós que avoa nele. É como a cachoeira: a pedra fica, a água vai.” Assim começa Natureza, uma bela canção de voz e violão. Abujamra dedilha e André canta. Uma bela parceria, que rende um som tranquilo e agradável.

Tempo é uma canção bem peculiar. Uma mescla transloucada de brasileirismo puro com o toque genial da criatividade de Abujamra. “O tempo se divide no tempo, / se desliga do tempo, / se divide no tempo.” Os vocais sensacionais de Ceumar se destacam ao lado do teclado carnavalesco misturado à sanfona forrozeira. O trombone complementa e assina embaixo.

Em Atoto, Abujamra opta pela beleza sonora dos instrumentos orgânicos. Seu jeito de compor e cantar o Brasil, faz lembrar Zé Ramalho, Geraldo Azevedo e todo esse povo que mantém a música nordestina viva. Um belo solo de sanfona passeia pela música. Na letra, André fala em Atoto e Baluaê. Atoto é uma saudação que significa: Ele está em terra, ele está entre nós. Baluaê é o orixá da saúde, uma entidade bastante conhecida na umbanda.

Namburuque é uma canção interessante. É outra batida forte, em cima do drum bass, mas que é cantada numa língua indígena e tem umas vozes de mulheres ao fundo. Tipo Iemanjá. Bem arranjada, um trabalho realmente interessante com uma estética diferenciada e inspiradora.

“Maçã caiu no chão, / olha só a gravidade. / Raio caiu na terra, / temos a eletricidade.” Palmeira do Deserto é um espetáculo. Abujamra tem um jeito próprio de fazer música. E nessa canção ele mostra todo seu talento de juntar sabedorias universais, conhecimentos populares, e conclui com um poema fabuloso do seu pai, Antônio Abujamra, sobre a definição do infinito.

70% é uma canção sobre a mistura que somos, a diversidade de elementos que nos formam. Usa boas percussões e sua instrumentália faz lembrar o mundo das sonoridades africanas. Mostra que em cada coisa tem um pouquinho de outra. “Cem por cento não existe. / Ninguém é somente triste. / Cem por cento, gato mia. / Ninguém é só alegria.” E que a vida é toda assim, cheia dessas miscigenações.

Elevador é das canções mais bonitas do disco. “Essa canção é pra você, / mesmo antes deu te conhecer.” Parece um pop numa levada meio reggae. Tem um belo instrumental com slides de violão, traços de violino. Uma linda voz feminina entra antes da música dar uma quebrada e ganhar um corpo de rock muito bonito, cadenciado, com uma guitarra perfeitamente executada em solos afiadíssimos.

Blue Rose é uma passeio pela natureza ecológica da beleza rara da vida. “Nem tudo caro é raro”, André avisa os desavisados. Logo depois a música dá um espetáculo instrumental, e colore nossos ouvidos com uma sonoridade típica do oriente. O elegante poema Senha Do Motim, interpretado via telefone por Walter Franco, encerra a canção, colocando a mulher no seu justo lugar. “Tu és o raro, o novo, és o eterno e voraz. Tens no olho, o brilho, o fogo, dos teus ancestrais.”

Magina De Pipo dá a impressão de que estamos no meio de um espetáculo musicoteatral, estrelado por um ator e uma atriz que contam a história cantando, e atuando em cima de um palco devidamente cenografado para uma tragédia do mais alto dramatismo. Uma canção melancólica, que tenta falar da dor e mostrar seu papel na felicidade.

Curriculum é uma faixa única, cômica e autobiográfica. André Abujamra traça um resumo histórico de sua vida, apresenta sua família, seu trabalho e descreve sua passagem pelo planeta até os dias de hoje. Muito boa. Genuinamente autoral. Um genial final de disco.

O Infinito De Pé é inteligente, crítico, ousado, e mais artístico do que muitos outros discos que andam vendendo aos montes por aí. Colagens, percussões vocais, experimentos vocalizados. André Abujamra canta como quem transpira num dia de verão.



Meu Olho Azul // O Infinito de Pé


Um comentário:

  1. ah! você me apresentou o andré abujamra com esse disco. já conhecia algumas-poucas coisas do karnak. depois conheci os mulheres negras com yuno. esse cara é demais! já ouviu o Mafaro (alegria)? :)

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