@palivre

sábado, 23 de agosto de 2008

assim como se nada #3


ERA COMO SE EU ESCUTASSE
imagem de autor desconhecido



Não vou fingir que tudo foi por acaso. Quando avistei o outro caminho na minha frente, pensei duas vezes antes de seguir. Não era por ali que eu estava esperando ir, mas teve que ser assim. Tive que ser assim. Eu me dei, mudei, mas não adiantou. Era preciso mais. E eu com tão pouco. Um bolso cheio de palavras e só. Enquanto espano o pó dos livros, um título pergunta: o que palavra tem a ver com vida?

A ferida está aberta. As moscas estão chegando. Vou assistir cada ovo que elas vão pôr. Com dois pedaços de isopor vou fazer cair neve esta noite. E depois dos ovos, as larvas. Quero ver as palavras escorrendo pelo meio. E antes de ficar tarde, o pus. Esse eu pus no lugar certo. Aberto, ferido, inflamado e vulnerável. As larvas vão fazer festa hoje à noite.

Cada palavra é um mundo. E dentro desse mundo habitam bilhões de palavrinhas. Palavrinhas porque vistas de cima. Se vistas de perto, na proporção original, elas seriam o normal, o próprio tamanho da palavra, o mesmo tamanho do mundo. Um buraco aberto e profundo: esse é o mundo da ferida.

A vida é uma experiência inesquecível. Até que esqueçamos que a experiência somos nós. Quando chega nesse ponto, todas as linhas se quebram. Relações, ligamentos, fibras, tudo que estava por um fio, agora finalmente se rompe. E então é tudo fragmento. Sabe o excremento que rejeitamos? Volta tudo pro mesmo lugar. Olha eu voltando pra lá. Olha lá eu voltando aqui.

Sorrir por sorrir não dá mais. Sorrir agora é sinônimo de engajamento. Não se engane com as artimanhas da vida. Mesmo completamente emaranhado nelas é possível tentar compreender. Então num dado momento, num certo espaço, numa estranha circunstância, na instância duma entranha, eis que brota o sorriso. Ainda tenho todos os sisos: do primeiro ao quarto. Não posso dizer o mesmo sobre a amídala e o apêndice. O índice da minha vida está manchado de vinho. Sozinho ocupo uma cama de casal. O engajamento é fundamental. Sorrir está ligado a questões muito maiores.

Desde pequeno eu sonho acordado. Mas demorou muito até perceber que o sonho não acaba no quarto. Primeiro: os sonhos estão no mundo além das formas. Segundo: os sonhos existem antes de nós. Terceiro: os sonhos não escolhem os sonhadores. Claro que perceber isso foi como um choque. E como eu estava sentado, me senti numa cadeira elétrica.

A métrica, a rima, a pausa, a poesia de cada palavra vem do ar que respiro. Giro trezentos e sessenta graus, em todos os ângulos, para todos os lados, em todas as direções. Não é suficiente apontar a atenção para alcançar um objeto. Por mais que a gente corra, o sol sempre corre mais. Essa lição eu aprendi trocando de lanche no recreio. Era uma época em que os seios das mulheres só existiam para dar leite.

Hoje eu quero muito mais que mamar, que chorar, que sonhar. Hoje quero um samba que eu não escute, uma bebida que eu não beba, uma saída que eu não dê. Quero apenas sentir a graça e a desgraça do quê de cada enfim. Não fale de mim dessa forma. Não fale de mim como se falasse de mim. Não fale de mim sem saber que você só fala de você.

Eu estou cansado, abalado, devidamente desestruturado, e desequilibrado suficiente para dizer coisas que ninguém quer ouvir. Por isso peço cuidado. Aviso aos navegantes. Meus alto-falantes estão operando em volume máximo. Eu dei o máximo, estou dando o máximo, vou dar o máximo, e sei ainda que não é suficiente. Tente outra vez, com Raul Seixas.

As queixas continuam chegando e começam a se acumular lá fora. Acabou o espaço aqui dentro. O centro dessa discussão se movimenta tal qual uma estrela. A palavra que foi apagada no texto não foi apagada na vida.


3 comentários:

  1. Faz tempo que tô pensando no que dizer sobre esse texto.
    Poderia colocar todas as palavras do mundo, mas é aquela história: seria um nada tão grande, que mesmo se fosse tanto, ainda não seria tudo.

    Apenas fico feliz que tenha voltado.
    Estava a la deriva, sentindo uma falta danada de desaguar em reconhecimento nessas letras. Porque você diz o que eu não sei dizer.

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  2. leminski sabe de muita coisa.
    e se você não pode ficar, vá.

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  3. "Sorrir está ligado a questões muito maiores."

    belas figuras que crias em teus textos.
    voltarei.

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