@palivre

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

conta outra #1


ANDEI, ANDEI, ANDEI ATÉ ENCONTRAR
imagem de autor desconhecido



“Socorro”. Foi assim que ela me respondeu ao perguntar seu nome. Não fiquei muito surpreso: sua face tinha a notória expressão de quem pede ajuda. Mas de quem pede ajuda pra si mesmo, de quem se sabe o mais capacitado pra resolver as próprias questões. Ela sabia que dependia exclusivamente dela. E muito. Ela exalava necessitude*. E alguma virtude rara eu pude ver naquele rosto esmagado pela própria estrada. Mas não me pergunte qual, porque virtudes raras não têm nome e nem merecem ter.

Da primeira vez que vi Socorro mostrar seu desespero eu sinceramente não lembro. O que lembro claramente é dela caminhando, confiante, decidida, rumo a um destino passageiro. Ir ela ia sempre. Parecia empenhada no seguir, tensa e compenetrada, superestimulada por um próprio propósito proparoxítono que não dava brecha pra tropeços. Uma disposição selvagem, intestinal, com uma vontade e um jeito único, independente de previsão do tempo. Marchava feroz pela selva de pedra fazendo de seus pés um par de botas que se camuflavam na lama dos dias. E como ela andava. Nem o chão sabe o quanto ela andou. Seus passos não mentiam, brotavam. Seu caminho não parava, fervia. Enquanto olhar pra frente distraía o movimento.

Não importava em que lugar da cidade eu estivesse, ela sempre esteve lá. Chegava antes de mim, às vezes depois. Partir era sua especialidade. Repartir talvez seu compromisso: o possível fator originador de toda essa andança sinfonicamente peculiar. E eu, sem saber de nada, também estava ali, presente, acompanhando, compartilhando de perto o desenrolar de uma história muito maior do que eu. Pode me chamar de observador, prazer. Socorro já não estava no mesmo lugar. E o mais curioso: eu já sabia que iria encontrá-la novamente.

No caminho de casa, depois de um dia de trabalho cansativo na agência: “Socorro!” Indo à universidade, pra uma aula de um grupo de estudos bacana focado na transpessoalidade: “Socorro!” Atrasado pra uma reunião no meio da tarde, onde a última coisa que eu poderia fazer seria chegar atrasado: “Socorro!”. Depois de uma cervejada, retornando na madruga, ao som de Fixing A Hole: “Socorro!” O que eu podia fazer? Nada.

Sei que nada é por acaso, coincidências não existem, portanto. Tudo surge de uma resolução prévia, um destino criado em conjunto, simultaneamente. Onde cada um influencia in ou conscientemente, mas influencia. E decide mutuamente o andar da carruagem, que não é só feita de abóbora não, tem feijão e muita coisa nesse prato. Mas desde quando eu venho criando essas coisas sem saber? Como não me toquei que eu era co-responsável por tudo isso? E por que logo ela: Socorro?

Estamos todos pedindo ajuda, não podemos negar. Em cada olhar que espera ser correspondido, em cada sorriso lançado ao mundo, em cada gesto, do mais desintencionado ao menos benevolente, somos necessitados, todos, sem exceção. Que feche esta janela quem nunca precisou de ajuda. Ou então que precisou e ainda precisa, mas prefere sofrer ao lado de um orgulho que sabe se fingir de força e amor-próprio a pedir o amor e a compreensão de um semelhante. Até quando vamos nos negar a engolir esse pedido de ajuda?

Todas as vezes que encontrei Socorro eu sabia que um dia eu iria conhecê-la. E o melhor: sem um porquê lógico, fácil, satisfatório, aniquilador das tão bem-vindas dúvidas. Que prazer é se submeter à incerteza do não saber exatamente de onde viemos e para onde vamos, desde quando e porquê. É nesse passo, em ritmo de tanto a saber, na consciência do saber nada, em meio a um mundo de aprendizados novos e incalculáveis, que me deparo com Socorro como mais um dos meus reflexos que perambulam por aí.

Hoje não resisti. Não teve como evitar. Em nenhum outro momento encontrei tanta aproximação e possibilidade de perguntar quem ela era. Negligenciar a oportunidade era a última coisa que eu deveria, e disso eu sabia bem. “Ei, espera aí!”, falei ao vê-la a cinco metros, caminhando à minha frente, no instante exato, estranho, inusitado, em que saía do meu trabalho. Ela olhou pra trás sem interromper o passo, mas diminuiu a velocidade para esperar minha voz alcançá-la. Contei que sempre a via andando por todos os lugares, sem restrição, que achava aquilo intrigante, diferente, interessante.

Ela pareceu muito sábia. Pelo menos seu silêncio e obstinação no próprio trajeto demonstraram grande sabedoria. Ela também pareceu gostar de saber que eu sabia que ela fazia das ruas metade da sua vida. Quando olhei pro rosto frágil e enrugado de Socorro e perguntei por que ela caminhava tanto, ela me disse com a fisionomia de quem acredita no inexplicável e a ironia de quem conhece o relevo das estradas que nunca atravessou: “Você tem uma sugestão melhor?”


* Necessitude [Do bra. necessidade + vicissitude] S.f. 1. Qualidade de algo ou alguém que não precisa de nada além do básico, mas tem a capacidade de desprecisar no durante das circunstâncias, em benefício de despropósitos e inutilidades desconhecidas e inexperimentadas.


2 comentários:

  1. não li o que tem escrito, mas gostei bastante da estética. e da foto do post. muito bonita. depois passarei com mais calma pra te ler. :)

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  2. Gosto dela, talvez até mais do que a moça da padaria.

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