O TEATRO DOS CULPADOS
imagens de autor desconhecido

Agora deu a louca na macacada. Ih... Será que ainda podemos falar assim, tão saltimbancos, fazendo chacota da espécie humana, associando a gente aos nossos irmãos primatas? Eita... Será que podemos dizer que somos irmãos dos primatas? Não estaríamos ofendendo alguém, estaríamos? Será que corremos o risco de alguém criar um blog ou uma campanha no twitter em resposta ao tom jocoso dessa forma de se expressar?
Em primeiro lugar, desculpas. Não é possível agradar a todos, como também não sair da linha. Que espécie de linha é essa, em que cada vez que você sai dela é punido, mesmo sabendo que é impossível não sair dela uma vez ou outra, e que ela foi traçada por, e para, você, apenas para ajudá-lo a não se perder dos próprios passos? Que emaranhado de nós é esse, em que os homens se meteram, se perderam e se voltaram contra si mesmos?
Porque agora a moda é intolerância... Culpar e punir está em alta. Mesmo que isso não seja nenhuma novidade. Já o bom humor, está em baixa. E todo ódio do povo vem à tona nesse melodrama mal-redigido, também conhecido como Teatro dos Culpados.
Como assim? Que Teatro dos Culpados é esse?
O Teatro
Faz um certo tempo que a mídia brasileira vem usando e abusando de uma fórmula nada ética pra ganhar mais audiência: criar culpados. Ou melhor: transformar culpados em celebridades. Vale salientar que não se tratam dos verdadeiros culpados por estarmos nessa deplorável situação social, e sim uns culpados de meia tigela, que estão na função de bode expiatório, pra criar a ilusão de que a sociedade está trabalhando sério e a justiça está cumprindo seu papel.
Pra mídia, é muito fácil. Basta pegar alguém que escorregou na casca da banana e jogar todos os seus holofotes em cima. O resto fica por conta da opinião pública - ou do que deveria ser isso, já que a maioria não tem uma opinião própria, sendo mero reprodutor das opiniões ditadas pela mídia - que nesses tempos de internet está mais ativa do que nunca.
Faz lembrar uma frase, que diz mais ou menos assim: "A pior coisa do mundo é burro com iniciativa". O autor dela? Paulo Maluf: um dos maiores corruptos que o Brasil já teve. O mesmo que recentemente afirmou: "A minha ficha é a mais limpa do Brasil."
Mas é assim mesmo no Teatro dos Culpados. Enquanto o público assiste uma garota ser execrada publicamente no palco principal, como se fosse uma barata asquerosa que merece ser urgentemente aniquilada pela solado de um coturno preto, a Justiça brasileira ostenta uma admirável coleção nos camarins: uma série de documentos que indicam uma movimentação de US$ 446 milhões em contas em nome de Paulo Maluf no exterior. Inclusive seu nome foi incluído na difusão vermelha - uma espécie de lista negra que serve como mandado de prisão internacional - da Interpol, a partir de solicitação dos EUA. Malufinho, ou Maluf Jr., como é conhecido Flávio, seu filhote, não fica por baixo: também está na lista dos mais procurados e pode ser preso em 181 países. Tal pai, tal filho.
O espetáculo
A última da vez foi mobilizar toda opinião nacional para um pequeno e rídiculo caso de uma garota que falou o que pensava. Enquanto todo mundo se escandalizava com a barbaridade que ela falou, e vestia nela a fantasia de a-mais-nova-culpada, a mídia ganhava tempo pra embaralhar as suas cartas novamente antes de apresentá-las para o espectador. Como notícias: o que é o mais ridículo. Enquanto canalizava todo o ódio do público para a bola azarada da vez, a mídia tirava a atenção de quem é a verdadeira vítima dessa palhaçada toda: você.
Sim, caro amigo, você é o mais prejudicado com tudo isso, não a garotinha, nem os ofendidos por ela. É a sua integridade que está em jogo, os seus valores, o seu discernimento. É você que vai decidir entre continuar dando ouvidos pras bobagens que circulam pela mídia
- sem pensar no que se passa em seus bastidores, nem nos interesses em jogo por trás dessas notícias - ou tomar alguma atitude. Porque se depender de quem está no controle dessa poderosa máquina pra ajudar você a se situar na história, ou se aproximar um pouco mais de onde está a verdade, você está ferrado.Mas o que acontece enquanto a mídia dirige toda opinião pública para um único caso, e o que é pior, para um caso tão insignificante como esse? Bem, ela consegue atingir o seu primeiro objetivo: distrair você. Sim, amigo, a mídia tem interesse de tirar sua atenção do que realmente importa. Assim, ela impede que você tenha uma opinião realmente válida, que possa se tornar crítico e duvidar de sua credibilidade. Assim, ela faz de você um alienado, preparado somente pra debater assuntos sem importância. E continuar longe da verdade, perdido em superficialidades, vivendo numa espécie de marginalidade informacional.
Segundo Noam Chomsky, a distração é a primeira estratégia de manipulação midiática:
"O elemento primordial do controle social é a estratégia da distração que consiste em desviar a atenção do público dos problemas importantes e das mudanças decididas pelas elites políticas e econômicas, mediante a técnica do dilúvio ou inundações de contínuas distrações e de informações insignificantes."
Atraindo sua atenção para temas irrelevantes, como esses que estamos vendo no mainstream, seja em tv, jornal, revista ou internet, a mídia consegue manter você longe dos verdadeiros problemas, sejam eles sociais, políticos, econômicos ou ecológicos. Mantendo o público distraído, fica muito mais fácil manipular. Manipulando, fica muito mais difícil de perder o poder.
Sim, caro amigo, eles tem o poder. Não todo poder do mundo, mas o quarto poder, que por si só já é bastante. Inda mais nesses dias de hoje, onde a realidade está reduzida ao que a mídia impõe ou deixa de impôr.
Talvez seja uma boa hora pra evocar o Capitão Planeta, que mesmo diante de todo esse lixo e poluição, viria restabelecer nossa confiança e devolver a consciência de que também podemos agir, nos dizendo: "O poder é de vocês." É a lição do otimismo, mas também da conscientização, afinal mais cedo ou mais tarde teremos que reconhecer que o poder também é nosso, e que afirmações como "o povo unido jamais será vencido" ou "a união faz a força" são realmente verdadeiras. E que foi justamente por perdermos o contato com o nosso poder, que deixamos todo poder se concentrar em mãos alheias - mãos injustas e exploradoras, diga-se de passagem. Mas isso se quisermos vislumbrar uma reviravolta, ao menos nessa vida...
A vítima
A garota falou o que muita gente fala e fez o que muita gente faz, mas estava no lugar errado e na hora errada. Sim, ela foi discriminadora: agiu preconceituosamente contra um grupo, que - apesar de representativo - já foi muitas vezes desvalorizado em nossa sociedade, manifestando uma opinião agressiva e indiscutivelmente polêmica.
Cá pra nós... Ela foi preconceituosa, mas, no fundo, quem não é? Não que isso seja certo, ou digno de ser apoiado, mas é um fato, constatado. Ou será que você nunca emitiu uma opinião precipitada, classificando alguém ou alguma coisa antes de conhecê-la, antes mesmo de deixá-la se manifestar? Será que nunca esboçou um gesto contrário a algo que não conseguiu entender de primeira, formando um conceito prévio sobre a coisa em questão?Pois bem, isso é pré-conceito. Ou preconceito, como convencionamos chamar. Claro que não caracteriza um preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional - categorias dispostas como crime na Constituição Federal - mas continua sendo um preconceito. E para fins de informação, é desse preconceito básico que brotam todos outros tipos de preconceito.
Não que cada um não deva satisfações à justiça por ter desacatado a lei, mas que não precisamos transformar o delito de cada indivíduo em um espetáculo de projeção nacional, isso definitivamente não precisamos.
Nós pensamos todo tipo de coisa. Todo tipo de pensamento já passou em nossa cabeça. Dos mais ridículos aos mais nobres, dos mais vis aos mais puros. Alguns pensam mais em bobagens, outros menos, mas no fundo todo mundo já teve um pensamento maquiavélico, ou mesmo medíocre. E não só pensou, como já falou, ou escreveu. Alguns foram mais além, e cometeram atos.
Cá pra nós: a linha que separa pensamentos de palavras e palavras de ações é muito tênue, não? Para termos uma lei que regesse bem essas questões, necessitariamos de uma certa flexibilidade, e um discernimento muito apurado para analisar cada caso em seu devido contexto. Mas temos isso?
Além de que não parece ser exatamente um problema da lei, e sim, novamente, um problema dos homens. Porque a partir do momento que elegemos uma figura - a bola da vez é essa garota - para martirizar, para depositar nela toda a culpa gerada por nossos próprios erros, não estamos sendo nada justos. E se queremos falar de justiça, seria bom que não depositássemos pesos extras nessa balança.
Os Culpados
E agora vem a parte mais divertida. Se a vítima é a garota, quem são os Culpados? Porque se a pessoa que ofende é quem sai como vítima, não dá pra entender mais nada nessa história.
Calma, gente, é apenas mais um veredicto. O tribunal especial de grandes causas deste Teatro declara a todos: os culpados são os que atribuirem culpa. Portanto, os Culpados são a garota, os espectadores, a opinião pública, os tribunais, a nação, todos nós que de uma forma ou de outra atribuimos culpa, seja a nós mesmos ou a outras pessoas. A culpa é a invenção mais sórdida do Teatro dos Culpados: ela atesta que alguém seja rotulado pelo que fez de errado, aplicando uma pena maior que a já imposta a quem cometeu um ato irresponsável. A culpa é um invento ultrapassado que nós, homens, insistimos em levar pra frente. Tudo pela ignorância de um simples fato: a culpa não leva ninguém a nenhum lugar. A não ser o do calabouço, o das armadilhas, o das aflições e dos pesadelos. A culpa não pode ajudar a resolver este assunto. A culpa aqui não é útil pra nada. A não ser para fugir do ponto central da discussão: você mesmo - leia-se: sua responsabilidade nessa história.E responsabilidade significa ter a capacidade de agir conscientemente e responder inteligentemente aos fatos e situações. Porque o Teatro dos Culpados não se levanta do nada, não se ergue da poeira por livre e espontânea vontade, mas é construído pelo modo de vida do homem e seu relacionamento com a própria espécie: ele tem sua origem em você. É a dramaturgia que homem levantou ao redor de si mesmo enquanto desdenhava o que se passava em sua casa para supostamente cuidar da vida pública, ou dos negócios. É o objeto de vergonha dos lares supostamente civilizados - que agora, mais do que nunca, têm suas vísceras expostas em rede nacional nesse megaprograma de auditório - e de cobiça dos lares gananciosos, onde reina a ignorância e a ambição.
Noticiários que perderam sua função informativa e se tornaram meros detratores dos infratores da ralé. Jornais que esqueceram o que é notícia e se deixaram contaminar pelo fermento da mídia golpista. Se for pra falar de peixe grande, nada se escuta: a não ser o silêncio. Nada se escuta. Nem mesmo o silêncio. "Você escutou algo? Tá demitido!" E assim, pouco a pouco, cada caso vai sendo abafado, cada responsável vai sendo esquecido.
Mas como trata-se mais da responsabilidade do que do responsável, pensemos à respeito da responsabilidade de reconhecer que todo mundo erra. Ou que algum dia na vida já errou. Ou que se não errou, pode errar. E que não é culpando, ou punindo, que vamos impedir que esses tipos de erro voltem a acontecer.
Não temos provas para atestar que o modelo 100% tolerante funciona, mas temos provas de sobra para saber que seu arquiinimigo, o repressor, não tem funcionado nem um pouquinho que seja. Os EUA, por exemplo, é uma das nações mais severas no trato com quem infringe a lei, condenando inclusive homens à pena de morte. E será que isso resolveu? Será que esse modelo impediu o homem de errar, ou praticar o mal? Parece que não. Segundo os dados disponíveis, a situação por lá não anda nada bem, e parece piorar a cada medida repressiva que seus cruéis governantes tomam: de cada 100 adultos americanos, 1 está atrás das grades, e sua população carcerária, que já vai pra lá dos 2 milhões, é superior a de 15 estados da sua federação. Sem falar na reconhecida fama de ser a terra dos crimes mais hollywoodianos de que já se ouviu falar: crianças com metralhadora, velhinhos com bazuca e jovens senhoras com bebês no colo e granadas na mão. Será então que esse modelo punitivo, repressor, ditatorial, pode impedir a violência de continuar rolando solta?
Já o Sudão, consegue baixar ainda mais o nível: executa menores sumariamente, se aproveitando de uma lei que já não diz mais respeito ao seu tempo. Seu presidente, Omar Hassan al-Bashir, no poder há mais de 20 anos, é um dos principais responsáveis pela perpetuação da violência no país e recentemente foi condenado pelo Tribunal de Haia - Corte Internacional Criminal - por comandar uma massacre que culminou na morte de mais de 300 mil pessoas. Mesmo assim, o chefe de estado fez pouco caso da condenação: disse que não valia a tinta com que foi escrito, enquanto dançava para seus partidários - que por sua vez cuidavam de queimar uma imagem do promotor-chefe do Tribunal responsável pela condenação.
Quando por fim encerrou sua vida pública, como que reconhecendo não ser uma liderança conveniente para o país, Figueiredo declarou em rede nacional: "Bom, o povo, o povão que poderá me escutar, será talvez os 70% de brasileiros que estão apoiando o Tancredo. Então desejo que eles tenham razão, que o doutor Tancredo consiga fazer um bom governo para eles. E que me esqueçam". Infelizmente, Tancredo faleceu, e tivemos que arcar com o império dos Sarneys, que provavelmente não foi muito diferente do que seria o dos Malufs.
A tragédia
Tem sido dito por aí que a tolerância levada ao extremo culminaria inevitavelmente no seu oposto: a tirania. Como alguém pode dizer que um conjunto de flores é igual uma poça de lama? Como alguém confunde o lodo fétido da tirania ao perfumado aroma da tolerância? Talvez tenhamos invertido a tal ponto os valores, e pervertido tanto quem somos, que tornamos a dor o nosso grande prazer. Na ausência de conhecer realmente o prazer, e o que somos, e o merecimento que temos de ser herdeiros disso tudo, talvez tenhamos virado masoquistas. Masoquistas de apenas levantar o dedo e apontar culpados, quando não há culpados, há apenas responsáveis. De apontar um dedo pro outro enquanto três dedos de nossa mão estão apontando pra gente. E quando esse que chamamos de outro, numa instância mais ampla, transpessoal, também é a gente.
O que vai contar agora é se viveremos um tempo de hipocrisia, onde fingimos pra todos ser algo que não somos, vestindo uma fantasia de perfeitos, nos disfarçando de moralmente e eticamente corretos, quando, em verdade, somos uma corja de bárbaros - que ainda está aprendendo a se humanizar e importar com essas coisas - ou se viveremos um tempo de mudanças, onde finalmente encaramos os fatos externos como resultantes de todo uma conjuntura, que de forma alguma estaria isolada do contexto onde tais fatos acontecem - assim como de seus envolvidos.Quem estaria certo no meio dessa discussão? Nessa gana de sairem todos em busca de culpados, não acabariam todos culpando a si mesmos? Não acabariam todos culpando todo mundo, e esquecendo de pensar na própria responsabilidade por tudo isso que estamos vivendo? Não acabariam culpando os peixes pequenos e deixando escapar o peixe grande? Porque nesse Teatro, todos são culpados. Todos são xénófobos. Todos são racistas. Todos são preconceituosos. Todos são, em resumo, discriminadores.
A xenofobia é uma forma de racismo: nega uma raça de outro país ou região. O racismo é uma forma de preconceito: faz conceito prévio de um cidadão de outra raça ou cor. O preconceito é uma forma de discriminação: diferencia um ser do outro por gênero, status, credo, ou religião. A discriminação, por sua vez, é a origem de todos os outros.
É por isso que no fim todos são discriminadores: porque de uma forma ou de outra acabam excluindo tudo que não corresponda a eles mesmos, gerando uma antipatia por qualquer idéia contrária. E o que começa num simples pensamento de inaceitação do outro, automaticamente se torna uma discriminação do outro. Quando a gente resolve ter preferência por um ou outro modo de ser ou pensar, já começa esse processo de seleção. E como em todo processo seletivo, os que não são escolhidos acabam ficando pra trás.
A comédia
E quem são esses que geralmente não são escolhidos? Quem são esses que acabam mal-vistos ou são tratados como se não merecessem justiça e igualdade? Quem são eles? São muitos, e estão por todos os lugares. Pode chamá-los como quiser, porque já os chamaram de tudo. Eles estão em todo lugar, e não tenha alguém que não tenha pelo menos um deles dentro de si. Já foram chamados de tudo quanto é nome no mundo, e mesmo assim continuarão sendo chamados, enquanto não descobrirmos de uma vez quem eles são.
Vamos bater palmas para os nossos convidados! Sejam bem-vindos hippies, playboys, bipolares, paranoicos, esquizofrênicos, gays, lésbicas, ateus, crentes, putas, aidéticos, anoréxicas, obesos, pinicas, pedreiros, pagodeiros, rockeiros, funkeiros, forrozeiros, mauricinhos, patricinhas, maloqueiros, bêbados, caretas, maconheiros, branquelos, negões, amarelados e vermelhos, russos, chinos, americanos, iraquianos, africanos, italianos, alemães, sejam bem-vindos pais, filhos, avós, netos, irmãos, irmãs. Sejam bem-vindos cães de briga, vira-latas, gatas no cio, burros, porcos, cavalos, vacas, cobras, galinhas, topeiras, macacos, araras, piranhas, aranhas de gigantes teias. Sejam bem-vindos e bem-vindas, caríssimos companheiros e companheiras.No Teatro dos Culpados todos recebem uma fama, um rótulo, são vistos como menores ou piores de acordo com uma classe ou comportamento, tudo para esquentar ainda mais o espetáculo, porque o show não pode parar. É preciso vender mais revistas, mais jornais, aumentar a audiência dos noticiários: e para isso se criam mais culpados. E se não são criados diretamente, são indiretamente: apoiando toda essa cultura de caça às bruxas, de opressão e repressão.
"A utilização distorcida dos meios de comunicação, sobretudo a televisão - reforçada hoje por uma Internet que a longo prazo tende à fusão de informação e telemática -, incentiva a proliferação de métodos sutis de manipulação da opinião pública, começando pela forma como essa opinião se cria a partir do poder segundo uma engenharia de informação e da comunicação - na verdade, da desinformação e da incomunicação - que funciona como aparato de propaganda para a "fabricação do consenso" [...] Então, as formas democráticas começam a esvaziar-se de conteúdo para derivar numa "democracia sem cidadãos"." (José Antonio Pérez Tapias)
Mas a verdade é que, independente do Teatro dos Culpados, ou quem faça parte dele, todos nós somos iguais, não tem melhor nem pior. Querer admitir alguma hierarquia entre os homens, colocando uns acima e outros abaixo, é um ato de indisfaçável discriminação. E a discriminação é a origem de todos os preconceitos. Ao tratar alguém como diferente, como um não-semelhante, como você pode querer obter a justiça?
Quem for realmente justo e igualitário - ao contrário dos discriminadores, preconceituosos, racistas e xenófobos - vai ter que admitir: somos todos iguais, independente de cor ou raça, credo ou nação. E todos, seja quem for, têm direito de ser respeitados por aquilo que são, seja lá o que isso for. Todos tem direito de ser tratados como humanos, como cidadãos, independente da besteira que tenham feito. Ninguém merece ser humilhado, virar showzinho na mídia nacional ou servir de bode expiatório pra encobertar o que realmente está acontecendo.
A discriminação
Estamos sendo atacados por um inimigo invísivel: a nossa própria discriminação. É isso que realmente está acontecendo. Estamos sendo vítimas de nossa própria ignorância e arcando com as consequências de nossa própria injustiça. E toda essa barbaridade insana é causada por uma mente embotada, uma lente distorcida, uma percepção empoeirada. Toda essa negligência que cometemos com nós próprios, ao preferir apontar o dedo do que juntar as mãos. Porque se juntássemos as mãos, saberíamos: o amor não discrimina.
Mas como continuamos de dedo apontado, todos recebem um nome, um rótulo. E mesmo que ninguém diga, ele se passa na cabeça. Flutua no pensamento, confunde as idéias, contamina a razão e leva alguém a pensar que pode ser melhor do que um semelhante. Como um outdoor de propaganda de refrigerante, mostrando pra todo um público-alvo como se mata a sede - e a saúde - indicando qual o modelo a ser seguido, ditando o que está ou não está na moda. E tudo que foge desse modelo, padrão, acaba vítima de discriminação. Que atire a primeira pedra quem nunca julgou alguém por seu status ou condição social.
Na relação dos brasileiros com os gringos, dois tipos de xenofobia são muito comuns. A primeira é a auto-xenofobia: preconceito contra indivíduos da mesma raça em detrimento de uma preferência por outra raça. Seus praticantes desprivilegiam os conterrâneos, tratando-os como se fossem uma sub-raça, e exaltam os estrangeiros, adotando-os como modelo de conduta ou exemplo de sucesso. A segunda é a xenofobia clássica: preconceito com indivíduos de outra raça. Seus praticantes costumam tratar os gringos como uma ameaça, acusando-os de explorar nosso país, de roubarem nossas riquezas e colaborarem para gerar desemprego e prostituição.
O mais irônico é que as duas xenofobias são completamente contraditórias entre si. É como se o povo estivesse realmente perdido, confuso, e já estivesse quase chegando ao caótico ponto de eliminar-se a si mesmo. Mas não, há sempre um fio de esperança. Enquanto parece que todos já estão doutrinados e devidamente batizados no Teatro dos Culpados, aparece um ou outro relembrando que a brincadeira nunca acaba. Apesar de grande parte da massa já ter sido abduzida, sobra um ou outro mais rebelde que desestrutura o domínio dos partidários do Teatro. Deve ser por isso que Noam Chosmky costuma dizer: "O rebanho desnorteado nunca chega a estar devidamente domesticado: é uma batalha permanente."
O Teatro sabe disso, e insiste. Continua dispersando, induzindo, segregando, manipulando, fazendo uso e abuso da estratégia da distração. Alienando, doutrinando, embutindo na cabeça das pessoas que a culpa é a grande queridinha. Ensinando todos a criar sua listinha de culpados. E a depois sair atrás de seus inimigos, com pedras na mão. Porque é assim que o Teatro poderá torná-los culpados também, vide exemplo da garotinha.Ela ridicularizou os nordestinos, culpando os mesmos pelos problemas do Brasil: vai responder por xenofobia. E quem ridicularizou a garota, criando uma campanha que culpa ela pelo problema da xenofobia, denegrindo sua imagem, vai ser acusado de que: danos morais? Porque se o Teatro dos Culpados gera culpa, a culpa gera ainda mais culpados.
Então estamos aqui: não para defender a xenofobia ou qualquer espécie de discriminação, mas sim para criar uma forma mais salutar de lidar com tudo isso. Já sabemos que não será disseminando uma cultura de intolerância, perseguição e revivendo o velho caça às bruxas. Porque também sabemos que com isso, só vamos alimentar ainda mais a origem de todas as xenofobias, racismos e preconceitos. A regra é clara: discriminador hoje, discriminado amanhã.
Quando a gente discrimina alguém, seja um discriminador ou não, estamos colaborando com mais discriminação. Porque estamos levando pra frente uma cultura de segregação, de exclusão, que elimina quem não se adequa aos seus padrões ou corresponde às suas expectivas, ou simplesmente extrapola o limite do que ela considera aceitável.
Se toda vez que alguém errar, receber o rótulo de culpado, vamos criar um mundo de culpa, afinal todo mundo erra. Se nós mesmos criamos um mundo de culpa, de traumas, de conflitos, como podemos esperar ver outro tipo de realidade em nossa sociedade?
O Teatro dos Culpados contém em si a semente de sua própria destruição. E cedo ou tarde vai ruir.
A culpa
Eles estão falando com raiva. E nós, vamos ouvir com raiva ou bom humor? Porque é isso que vai contar...
E se ao invés de nos envolvermos, aproveitarmos essas oportunidades para investigar quem é o grande preconceituoso da história, qual é a fonte de toda essa discriminação? Talvez cheguemos a uma brilhante descoberta: é a negação do que nós mesmos somos. Sim, o homem nega aquilo que é para afirmar o que não é. E quem foge dessa loucura, ou mesmo tropeça nas regras desse mundo de ilusões, corre o risco de ser execrado. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.
Lembra aquele irmão que volta apressado pra casa doido pra contar pra mãe que a irmã beijou na escola? Isso é boa intenção ou inveja? É vontade de fazer o bem ou de vê-la castigada por aquilo que ela, supostamente, não pode fazer?
Todos aguardando a hora de ver o próximo condenado arder na fogueira... Nós temos uma capacidade muito grande de nos mobilizar para fazer o mal a alguém, mas quase nenhuma para fazer o bem. Pode ter certeza que se você tropeçar debaixo da passarela, o carro que vier na pista vai acelerar e te atropelar. Ele poderia reduzir e te salvar, mas como ele sabe que você está errado (afinal quem morre debaixo da passarela é considerado suicida), vai preferir matar você. E não vai ter culpa nenhuma disso. O único culpado vai ser você, que estava na hora errada e no lugar errado.É como se a gente tivesse esquecido que errar é humano. E nem me venham com aquela piadinha de que insistir no erro é burrice: porque perdoar é muito mais do que inteligência.
O cúmulo da intolerância chegou a tal ponto, que o próprio pai da garota disse que ela deveria ser punida. Você vê: até o pai, figura que deveria ser um exemplo de amor e perdão, está contra a garota. O que mais podemos esperar?
Casamentos por interesse, famílias de fachada, guerra entre pais e filhos. E, ao invés de cuidarmos da nossa casa, para arrumar a bagunça que nossa alienação deixou acumular, querem que nos posicionemos contra ou a favor de mais um vítima desse mórbido espetáculo.
No cartaz de divulgação, uma frase: "Perdoamos os políticos, mas trucidamos o cidadão." Os ingressos estão esgotados, e todos os assentos, ocupados. Sejam bem-vindos ao Teatro dos Culpados.
Nenhum comentário:
Postar um comentário