@palivre

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

conta outra #21


ARMADILHAS, DISFARCES, DESEJOS, MÁSCARAS E ILUSÕES
imagem de autor desconhecido



É um grande castelo. Todas as luzes estão acesas. A mesa está fartamente servida. São muitos os que dividem a dança no majestoso salão. Todos vestindo seus belos trajes, diferentes entre si, mas consonantes pela constância do dançar. Seus rostos são os mesmos. Dentro do baile deste enorme salão, todos têm um único rosto, igual, à perfeita imagem e semelhança de si mesmos. 


Homens dançam com mulheres, não existem velhos nem crianças, todos estão presentes e não parece haver razão para fazer outra coisa além de dançar infinitamente. Belos passos são dados, os casais estão sintonizados, tudo acontece em harmonia com a música. Quadros magníficos decoram as paredes do salão com pinturas retratando um simples e único rosto. O rosto sem sobrancelhas, sem pelos, inteiramente branco, de medidas exatas e formas justas. Uma máscara sem qualquer expressão, representando melhor o vazio da mudança eterna do que a total ausência de permanência no mundo das formas.

O rosto branco, desexpressionado, inexpressante, não mostra alegria nem tristeza, euforia nem tédio. Cabe ao rosto único branco, reproduzido em massa como cópias autênticas e perfeitas de si mesmo, decretar a imparcialidade. Não há nada a fazer diante dos fatos exceto tudo que se possa fazer diante deles. O rosto branco parece saber disso e não se importar, porque enquanto sua dança se reveste de corpos em incontáveis bailes, sua música se veste de máscaras em incontáveis corpos.

Estariam as armadilhas disfarçadas de desejos? Seriam os desejos máscaras da ilusão? O baile continua e à certa altura é notada a presença de duas ilustres figuras na celebração. Célebre é o rei, humilde sobre a triunfante cadeira, reinante sobre a multidão dançarina. Sentado em trono de metais e pedras, observa os perfeitos passos da dança, revelando o mesmo exato rosto que o de toda sua nação.

Ao lado do rei, um bem-vindo convidado, presença cativa no reino da celebração. Eis que o arlequim, vestido no traje mais colorido de toda festa, com o mesmo e único rosto, está ao lado do rei, complementando a sabedoria com graça, incorporando todo humor incapaz de ser imaginado como útil quando não associado à figura real. Do rei ao caos basta um arlequim. A ordem das coisas não é por acaso, nem é uma cadeia de causas e efeitos. Apesar de na desordem imperar a lei do eterno retorno, na ordem a justiça se mostra por outros termos, em outros tons.

A harmonia escolheu o caminho da música. A melodia escolheu o caminho da dança. Então a música toca no majestoso salão real, dourado pelas luzes cintilantes, enquanto os convidados dançam. Dançam encantadores passos intercalados, uns diferentes dos outros, mas conservando a mesma singela riqueza de dançarinos perfeitos. O rei observa a abundância de graça na dança sem fim. O arlequim preserva a dança da exuberância no reino da graça.

A música pára. Todos os convidados se voltam pra frente, na direção do trono, conservando o mesmo olhar, o mesmo mistério, a mesma expressão. O arlequim se aproxima do rei, olha para o salão, cumprimenta elegantemente cada um dos convidados, com um gesto único, e se volta para o rei. Dirige as mãos à sua face, segura a máscara, volta a olhar para a platéia, e tira. Silêncio absoluto no salão. Nenhuma expressão de surpresa, interesse ou aprovação. Enquanto a platéia nada vê, o arlequim nada faz e o rei nada é.

O arlequim tira a outra máscara do rei, repetindo os mesmos gestos, encenando os mesmos passos. Eis que surge outra máscara. E assim, máscara após máscara, gesto após gesto, e passo após passo, o rei observa os convidados enquanto o arlequim tira as mesmas máscaras, repete os mesmos gestos e encena os mesmos atos. Eis que as máscaras se acabam, e o arlequim revela o rosto do rei.

Um rosto branco, como todas as máscaras, como todos os rostos, exibindo a mesma expressão, perfeitamente igual e impecavelmente perfeita, de profunda e completa equanimidade. Nenhum gesto a mais, nenhum gesto a menos. Armadilhas, disfarces, desejos, máscaras e ilusões. Todos usando a mesma justa máscara, na simetria exata da total imagem e semelhança. Assim a dança continua por toda a eternidade. O salão cheio, a mesa farta e todas as luzes acesas. Os convidados, o rei e o arlequim. É um grande castelo.


Um comentário:

  1. Obrigada pelos comentários. Que bom que se sentiu á vontade em meu Blog, sinta-se em casa e volte sempre.

    Seu texto me extasiou por instantes.
    Dizem os místicos que acreditam em outras dimensões que, nos planos mais sublimes todos possuem os mesmos rostos. Deve ser pq a expressão causa tanto sentimentos bons quanto ruins e como isso já não importa os rostos são os mesmos.
    Mascaras usamos na realidade ilusória da Terra.
    Abraços.

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