@palivre

segunda-feira, 27 de abril de 2009

sonhar não custa nada #1


NÃO FOSSEM MEUS OLHOS
imagem de autor desconhecido



Estou sentado em uma moto. Não estou só. Uma moça de cabelos pretos me acompanha. Ela dirige a moto. Olhando melhor eu percebo: estou sentado em cima dela, na frente dela. Estamos na Roberto Freire, uma avenida próxima a minha casa, chegando perto do último retorno antes do Praia Shopping, um centro de compras voltado para os turistas praianos. Por algum motivo eu seguro a direção da moto e assumo o controle, sentindo um descontrole tremendo. A moça de cabelo preto se desespera, não tanto quanto eu, mas continua cuidando dos pedais e da aceleração.

Depois do retorno eu decido parar. Desde que fiquei sabendo que o peso do meu corpo estava todo em cima dela não consegui ficar tranquilo. Descemos da moto. Sentamos no calçadão. O calor nem é tão grande, apesar de ser dia. O dia está claro e limpo. Olho para suas pernas e pergunto se está tudo bem, já que estão marcadas com os contornos da minha roupa. Passo a mão por cima das marcas, com carinho, para desaparecem. Olho seu rosto e vejo uma expressão familiar.

Ela é uma mulher bonita, olhar leve, traços agradáveis. Percorro os olhos pelo seu corpo e agora a percebo melhor. É o tipo de mulher que ninguém vê nada demais, mas que no fundo, como toda mulher, tem algo de especial que a faz muito bonita. Sinto que estou de bermudas, mas quando a vejo colocar seus olhos por baixo, como numa brincadeira de criança onde um procura o outro no escuro, sinto que estou vestindo uma calça, daquelas folgadas, que nunca incomodam o corpo.

Seus olhos escuros, bem contornados pelos cílios e sobrancelhas pretas, me procura descontraidamente pelo pedaço de tecido que visto. Eu facilito o encontro: levanto o tecido elástico que envolve minha cintura e enfio meus olhos em busca dos seus. Passo por minha roupa íntima e percorro cada fio de cabelo das minhas pernas até encontrar seu olhar na altura do meu joelho direito.

Não sei o que aconteceu, pois me desloquei rapidamente daquele ponto para outro, localizado do outro lado da rua, há uns cem metros da avenida, no sentido de quem entra para o bairro. Agora estou a pé. Não está mais claro, já começa a escurecer. Ainda há alguma luz. O céu exibe as cores de um sol que se despede. Estou perdido, mas sei muito bem onde estou: a umas três quadras da minha casa. Não estou descalço, visto sandálias. O que me ajuda a carregar areia entre os dedos dos pés. No meu sonho, Capim Macio, o bairro em que vivo, ainda é um lugar cheio de areia.

Ensaio uma caminhada tomando a esquerda. Menos de cinco passos depois desisto, lembrando que minha casa é para o outro lado. Desço então reto a rua que está em minha frente. Caminho tranquilo, um pouco distraído. Uma coisa me chama atenção: o bairro está todo em obras. Para onde eu olho tem uma terra fora do lugar, um cimento batido, um tijolo esperando virar parede. Porém ao mesmo tempo está tudo abandonado.

Viro à direita e agora é só atravessar duas quadras para chegar onde moro. Esbarro em uma bicicleta e me assusto. Olho melhor e vejo duas, estacionadas na calçada. Duas bicicletas bem diferentes, mais longas, super reforçadas, como se fossem de corrida, esporte, coisas do tipo. Continuo o caminho. Sinto-me cambaleando, tal qual um bêbado ou um recém-acidentado, apesar de estar caminhando normalmente.

Chego a minha casa. Ela é grande, dois andares, predominantemente branca e tem um acabamento bastante rebuscado. A definição do estilo seria: casa mal acabada. Entro e sinto um clima estranho, tenso, como se alguma coisa estivesse por acontecer. Reconheço as pessoas dentro da casa. A casa não é só minha. Algumas pessoas moram aqui. Eis que me dou conta de que a coisa já estava acontecendo.

Ao ver todos indo pra fora da casa, decido fazer o mesmo. Agora estou com uma câmera fotográfica no pescoço. A noite já caiu. Não entendo bem o que estou vendo e estão me dizendo. De repente um barulho absurdo. Uma luz vinda da frente se aproxima. Tento pegar a máquina, colocar no modo filmadora, para captar algo do que está acontecendo. Mas nada. Enquanto tento, a luz avança, avança, até que passa por cima da gente, carregando um grande barulho e finalmente me mostrando a causa de tudo aquilo: um trem.

Um trem acaba de sair de cima da casa da frente, atravessar a rua, passar sobre nossas cabeças, e cair no trilho que continua por cima da nossa casa. Ou seja: há uma linha de trem passando por cima de onde eu moro. Não dá pra entender isso muito bem. O trem vem da outra casa, lá de cima, de algum trilho suspenso, algum trilho fixado sobre o telhado da casa, alguma estrutura inusitada o suficiente para me deixar boquiaberto. A luz e o som que chegavam, e escutei antes, eram o trem. O trem pulou de uma casa a outra sem sair do trilho. E seguiu viagem.

Assim que passou por minha casa, ele desceu e seguiu em frente até se perder no horizonte. O que dá no mesmo que dizer: até chegar onde eu não consigo mais ver. Atrás da minha casa é um descampado enorme, gigantesco, sem proporções ou medidas, basicamente coberto de areia. Imediatamente após o susto eu saio correndo. Vou para os fundos da minha casa na esperança de ver algo mais. Percebo uma viatura da polícia passando na rua ao lado, descendo, e estacionando na rua de trás. Era como se eles estivessem obedecendo a um chamado, uma ocorrência, como se alguém tivesse ligado um-nove-zero para pedir ajuda e comunicar sobre o trem.

Agora eu entendo. Tudo que está acontecendo é estranho para todos aqui. Eu não sou o único que está surpreso com essa loucura. Escuto mais um barulho. Corro de volta pra frente. Parece-me que outro deles vem aí. Novamente insisto na fotográfica, apesar da escuridão já ter se instalado. Enquanto minhas mãos tentam fazer algo, vejo outro trem decolar. Mas esse parece estar fora dos trilhos. Salta por fora da minha casa, em diagonal, num sentido duvidoso, porém com uma força e numa altura muito maior a do primeiro trem. Acaba encontrando a terra, lá bem longe dos trilhos, no meio de um terreno baldio, aparentemente desabitado.

Não sei muito bem o que aconteceu depois disso. Agora estou olhando pra máquina e confirmando que não consegui registrar nada. Paro e me ponho a pensar. Tudo isso foi muito confuso. A única conclusão que me vem é que não fossem meus olhos, nada teria acontecido aqui.


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