@palivre

quinta-feira, 30 de abril de 2009

conta outra #14


NA RAPIDEZ DE UMA NUVEM
imagem de autor desconhecido



Meia-noite. Ele puxa a cadeira, senta e liga o computador. Abre um novo documento em branco e começa a pensar numa idéia pro conto que nunca vai acabar de escrever. É a quadragésima quinta vez que ele está começando. Do mesmo jeito, sem pôr nem tirar. Cada peça em seu devido lugar. Ele começa, desmancha, e começa a montar tudo de novo.

Se levanta da cadeira para ver se pôs um ovo. Mas nada. Tudo ainda é como antes. Alguns pensamentos alucinantes sobrevoam sua cabeça. Ela pensa e alucina. Pensa na chacina que ocorreu naquela igreja. Lembra da menina que encontrou naquela festa. Um tapa mata o mosquito em sua testa e testa mais uma vez sua paciência. Ele não presta muito atenção no que pensa, por isso já esqueceu.

Ele pensa que precisa de um personagem. Então começa por isso. Que tal um rapaz que não fica em paz enquanto não termina uma história? Não, essa parece muito louca. Como a voz dele está rouca vai ficar ainda mais difícil. E se o rapaz pular de um edifício? Não dá certo, termina no começo. E se ele mudar de endereço e de nome? Não cai bem, sai do campo de visão. E se ele continuar ali sentado em frente ao computador pensando na idéia pro conto que nunca vai acabar de escrever?

Ele resolve fumar um cigarro. É sempre bom se matar aos poucos. E essa sensação de gradatividade é inspiradora. Talvez ela dê uma idéia. Um cigarro acaba rápido. Ainda mais desses industrializados. Senta na cadeira e levanta para ver se o ovo apareceu. Faz isso por mais de três vezes consecutivas. Nas próximas tentativas é melhor ser menos otimista.

Enquanto não define o personagem, ele define o que se passa. Mas tudo passa, nada fica. E o que fica a definir? Tudo que passa. E ele passa a prestar mais atenção nisso. Mas tudo passa tão rápido. Passa com a rapidez de uma nuvem. Na velocidade de um nada. O tempo é não vem que não tem. E assim falta a idéia. A idéia pra começar a história. O conto que ele nunca vai acabar de escrever. A memória que não resistiu ao tempo. O vento que virou um quadro na sala.

Uma mala largada no aeroporto. Uma aeromoça presa no banheiro. Dois passageiros brigando por um táxi. Com essa tela ele pensa em começar. Começa a pensar sobre isso: mala, banheiro e táxi. Parece roteiro de filme. Não é bem o que ele estava esperando. Ele está pensando em algo maior, melhor, mais substancioso. E por mais doloroso que seja, ainda não é. Nada chega perto de uma mera coincidência. Porque coincidência pra ele ainda não significa sincronicidade.

A essência de tudo está longe. E chegar vai ser difícil, mas não impossível. Coisa que ele não sabe enquanto tenta escrever. Dá duro para ler as idéias que não tem. Ele sente uma certa dificuldade em caminhar sozinho. A vida leva a muitos caminhos e todos têm um começo. Ele lembra do endereço, do personagem, da passagem de capítulo. Lembra de como tudo vai ser no conto que nunca vai acabar de escrever. E por lembrar, levanta. Mas não adianta: nenhum ovo de novo.

E depois de tudo, assim como se nada, ele tem uma idéia. E resolve escrever, sem pensar. Sem levantar pra ver. Sem medir. Sem tentar acreditar. Resolve escrever por escrever. Escrever, escrever, escrever. Como quem mente pra si mesmo. E assim começa mais uma vez o conto que nunca vai acabar de escrever. Não dá outra. Passam alguns minutos e muitas palavras surgem. Ele lembra que tudo isso já tinha acontecido. Lê o texto e acha parecido com algum texto já lido. Pensa que pode ser apenas um outro conto repetido.

Abatido com o que pensa ele pensa em fumar um cigarro. Pega o maço, abre, puxa dois, tira um, empurra outro, fecha o maço. Põe o cigarro na boca, pega o isqueiro na mesa e risca. Acende e traga. Solta fumaça e coloca o isqueiro na mesa. Olha a fumaça e lembra do isqueiro. Olha a mesa e traga o cigarro.

É interrompido pelo próprio escarro, numa cena catarrógica. Perde um pouco a lógica e por um momento tosse. Volta a sentar na cadeira. Olha o monitor e lê mais uma vez. Isso que ele fez está meio estranho. Não é o tamanho apenas, é o formato. Não é exato como ele planejou. Um rato aparece no quarto. Ele escuta o barulho de um elevador. Não o rato, o escritor. Parece que ratos gostam de elevador. Mas barulhos preferem ficar no quarto.

Ele pensa que há algo errado. Começa a reler o conto que nunca vai acabar de escrever, em ritmo acelerado. Ele esquece de ler uma linha. Lê uma palavra que não tinha. E continua até o fim. Chegando ao fim, ele pensa: não é a coisa mais intensa que já leu. Não tem a força imensa do que admira. Ele pensa.

Ele mira mais uma vez e pensa. Pensa que não é uma boa história, que poderia ter mais graça, que poderia sair fumaça pelo nariz. Pensa que nenhuma grande atriz vai querer interpretar. E como se tudo fosse giz em um quadro negro, ele pega o apagador e deleta. Desenha uma seta de borracha do fim ao começo. Não lembra do personagem, da mudança de endereço, da mala, do táxi, do ovo, de nada.

Para ele, a história está errada. Ele tem quer escrever certo. Ele está certo. Tão certo que não sabe que está errado por ter apagado o conto que nunca vai acabar de escrever. Ele tocou no tesouro. Ele conheceu a galinha que põe ovos de ouro. Ele teve a idéia pro tal conto. Ele escreveu o dito conto que nunca vai acabar de escrever. Ele escreveu e apagou sem saber. Sem saber que estava certo. Apagou por estar certo de que não era a idéia certa.

Ele está certo. A idéia realmente era errada. Mas o erro era justamente a idéia. A idéia era o erro. O erro perfeito, original, único. O erro certeiro. O erro era a idéia. A idéia pro conto que ele nunca vai acabar de escrever.


Um comentário:

  1. só vi teu comentário agora...
    é, nuvens são inspiradoras hehe
    como chegou no meu blog?

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