@palivre

terça-feira, 12 de agosto de 2008

conta outra #6


QUER PAGAR QUANTO?
imagem de autor desconhecido



Logo após sairmos incólumes de mais uma entre tantas madrugadas em Pipa. Já havíamos passado por todos os points da noitada, escutado todos os hits da estação e gastado quase todos os reais que haviam em nossas mãos. Já havíamos cruzado com todos os vampiros, que a propósito não se atraíram nem um pouco pelo amargor do nosso sangue. Sangue vermelho já contagiado pelo excesso de azul. Azul que se tornou um novo mundo de cores naquele início de manhã. Manhã onde os rótulos se mostravam dispensáveis, mas que independentemente disso insistiam em continuar presentes. Sejam bem-vindos então: a existência é grátis.

Um arco-íris foi o bom dia que recebemos assim que chegamos à praia. Praia rosa alaranjada com toques púrpuros de lilás. Restava-nos parar e contemplar. Pois bem, decididos seguimos até um banco que gentilmente nos convidou a compartilhar daquele momento em companhia de seu assento. Restava-nos aceitar. E a origem, a mãe, a fonte daquilo que estava acontecendo era o banco, nossos olhos ou o céu? Nenhuma das anteriores. Nesse caso o mérito era todo da plenitude, da completa ausência de exceções. Restava-nos calar e desfrutar. Éramos somente imensidões prontas para o novo, custasse o que custasse.

Ela sentada ao lado dele. O sol já fazia efeito muito antes de nascer. Retinas e pupilas mais ativas que de costume. Era um dia de cinema. Por favor, duas entradas pra sessão das seis da manhã. De repente, ao som das fabulosas trombetas alucinantes de origem desconhecida, surge estampada na tela uma cédula de duas unidades de real. Azul como a noite, o dia, o sangue e a imaginação. Dois reais de oferenda são lançados ao mar. Duas prendas a pagar. Primeiro ela: descobrindo a escada, deslizando na areia, refrescando as pernas. Procura sobre as pedras a tal nota de real. O cenário era irreal, pura ilusão, criação mental, fabulação incrível, faz de conta levado a sério. Porém fazia todo sentido. Um pouco mais de sal nas canelas e assim hora da volta. Dois reais. O valor de um ingresso para visitar o Atlântico? Ou o preço da folhinha verde que ela trouxe como suvenir? Duas hipóteses reais. Falando nisso, quanto custa a realidade?

Era então a hora dele. Tudo pronto para a ação começar. Câmera na mão dos olhos dela, acompanhando cada passo que ele dava sobre os passos que ela deu. Nenhum dos dois precisava de dublê. As ondas quebram mais forte, mas a sorte tem raízes e conhece bem o chão. Estica o braço em plano aberto, câmera fechando no detalhe, vasculha as pedras que estão à venda e caoticamente dispostas na areia. Rochas de qualidade, procedência garantida, alta credibilidade e singularidade sem igual. Artigos únicos. Escolha difícil em meio à enorme opção. Quem cria a dúvida é a oferta. E quem compra, somos nós?

Close na expressão de encantamento dele ao chegar perto da pedra que iria mudar a sua vida. Corte pra ela, ainda sentada, observando atentamente, admirando a miragem, vendo na tela as cenas de um filme sem roteiro. Ele olha pra pedra, a pedra não olha pra ele. Toda escolha tem seu preço. Ele desiste da pedra, o que o leva a outra pedra. Na outra pedra ele encontra mais receptividade, disposição e razão para dizer sim. Traveling acompanhando a tensão dele segundos antes do crime acontecer. Ele toca na pedra, sente a pedra, sua textura, consistência e calor. Ele segura a pedra, olha pra um lado e pro outro, e esconde embaixo da camisa. Confere se está mesmo segura, devidamente bem guardada, e dá no pé sem demora. Atenção demais nunca é demais. Corre decidido em direção de onde veio. Sobe as escadas e finalmente chega perto dela, senta ao lado dela, que o esperava ali no banco, espectadora e platéia, como o esperaria em qualquer outro lugar ou momento, não por compromisso ou pena, mas por motivos de força maior. Existem coisas que o dinheiro não compra ou a vida é agora?

Quando o sol cresceu mais, as cores ganharam mais força, as ondas mais praia e a gente mais tempo. Era um daqueles dias onde o relógio caminha pra trás. Era tudo que a gente precisa para desfrutar tranquilamente de todo aquele cenário paradisíaco, digno de destaque especial em qualquer daqueles programas que apresentam os melhores roteiros turísticos para as férias do próximo verão. Mas não é só. Além de visitar cartões postais, ganhamos de quebra recordações pra toda a vida. Tudo isso pela pela bagatela de dois reais. Dois míseros reais: seis pãezinhos franceses ou uma lata de coca-cola. É ou não é um bom negócio? Nem pagando em dia o carnê do baú ou comprando a tele-sena nas casas lotéricas nos daríamos tão bem. Mas de repente, assim como um filme que começa quando você ainda nem encontrou o lugar onde vai sentar, a coisa ficou diferente. Com a cabeça lá na frente, pensando em farejar a sorte, acabamos atraindo um personagem um tanto quanto cômico pra nossa história. Quem não deve, não teme.

De onde ele surgiu é uma pergunta que não nos fizemos. Ele chegou falando em Al-Qaeda e acusou um de nós de ser um suposto homem-bomba. Alertou que não gostava nada disso, que era da paz e do amor, mas também confessou que por um momento chegou a desandar. E, como num surto de lucidez, se indagou sobre sua paz, já que deixava a mulher sozinha em casa com os filhos enquanto ia pra rua tocar o terror. Ele se referia às investidas que fazia às turistas. Segundo ele, elas gostavam, e muito, da sua beleza. Beleza que, só para constar, nenhum de nós conseguiu encontrar. Devia estar escondida a sete chaves em algum lugar verdadeiramente oculto. Falou que se alguma bomba explodisse pelas redondezas ele iria perseguir o responsável e dar o troco, mesmo que fosse preciso ir até o inferno e procurar debaixo da asa do capeta. Ficamos tentando encontrar uma relação entre bomba, troco e capeta, mas não conseguimos elaborar um raciocínio válido. Aqui se faz, aqui se paga.

Na quadragésima oitava vez que ele insistiu em oferecer uma latinha de sprite misturado com um etílico qualquer, nós já estávamos a ponto de procurar a gerência, a agência de viagens, o procon ou o que fosse para recebermos nosso dinheiro de volta. A brincadeira estava começando a ficar séria, custar caro e a paciência para continuar contracenando à contragosto, com o inesperado coadjuvante que queria assumir a direção da cena, já tinha cessado por completo. Em clima de filme que termina sem porquê resolvemos ir embora. No lugar dos dois reais, ficou uma pergunta: qual o valor do dinheiro?


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