@palivre

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

assim como se nada #2


DESABAFO DE UM MORTO
imagem de jacques-jouis david



Estou de luto por minha morte. Faz exatamente vinte e sete anos, dez meses e cinco dias que morri. Desde então ando vagando por aí, por aqui, falando, escrevendo, buscando percorrer o caminho da inexistência sem tropeçar.

Nunca me culpei por demorar tanto a nascer de novo. A casca desse ovo se forma muito devagar. O nascimento em si, o além da gestação já é mais rápido. É como um túnel sugando para um lugar inevitável. Não lembro bem de como foi minha morte, sei apenas que estou de luto.

Lutar mesmo eu não luto. Estou de luto simbolicamente. No lugar da luta eu prefiro a dança, parece ter mais semelhança com a real essência da vida. Pois bem, para fins de esclarecimento estar morto não é lá tão ruim assim. Eu ainda tenho idéias. Ainda ajudo a criar o mundo, os mundos e todas suas dimensões. Minhas ações talvez não sejam vistas na prática, mas na teoria com certeza vêm dando sua devida contribuição.

Olhando por uma perspectiva mais lógica, relativa e holística poderíamos inclusive afirmar que cada ação realizada por cada ser, por mais ínfima e irrisória que possa parecer, é em si um ato positivo. Para se aprofundar no motivo que me leva a dizer isso precisaríamos de uma vida pela frente. Como estou morto, isso infelizmente não vai ser possível.

Sabe o que é mais incrível nessa vida de morto? A dor. Ela dói menos. Ainda não sabemos exatamente porque é assim, mas posso garantir que estamos pesquisando e trabalhando muito para explicar isso melhor. Alguns estudos realizados por aqui vêm apontando que a dor dói menos devido ao desapego, ao desprendimento e à falta de identificação com as realidades que a projetam.

No mundo do morto, o amor é maior do que tudo. Maior inclusive que o luto. O meu mais absoluto luto, por exemplo, passa por baixo do meu mais decadente amor. Portanto.

Mesmo assim o luto continua. Ainda estou puto com minha morte. Sinceramente até agora não superei o ocorrido. Tenho absoluta certeza que se alguém tivesse me socorrido eu não estaria aqui. Mas já que estou vou aproveitar, no sentido mais metafórico da palavra. Deitar, levantar, descansar, passar o tempo.

Tenho muita coisa para fazer. Não pense que estar morto é moleza. Aqui não tem empresa, capital, nem estado, mas todo o tempo da vida do morto está reservado para uma infinidade de ofícios maiores. “Melhores dias virão” é o lema da nossa cartilha.

Depois da morte, apesar do luto, tenho que confessar: não é o que eu aparentar, mas sim o que eu sou.*


* Não é o que eu nominar, mas sim o que eu indico.


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