@palivre

sexta-feira, 16 de maio de 2008

conta outra #5


CHÁ DAS TRÊS
imagem de autor desconhecido



Acabo de acordar. Já é tarde. Estou naqueles dias, em estado de cólica, sem saber por onde começar. Um copo de água, vinte gotas de própolis e começo o meu dia assim do nada, com os planos confusos e as idéias nebulosas. Vou ao quarto da minha irmã, que hoje serve de armário para mim, enquanto ela não volta do Pólo Norte. Esse quarto tem uma janela que permanece fechada para manter minha privacidade fora da vista de quem passa por ela. Eu moro num prédio, mas meu apartamento é no térreo.

Abro a janela, como tantas vezes faço, por costume, mania, paranóia, idéia fixa, falta do que fazer, neurose, e também por curiosidade, teimosia, esperança, intuição e coisas do tipo. Sinto derrepentemente algo estranho e me vem o pensamento de que nasci para fotografar eternamente o mesmo retrato, utilizando o mesmo enquadramento e foco, mudando apenas de máquina, equipamento, durante o evento que denominamos vida. A mudança de máquina é uma espécie de upgrade, uma transformação na configuração, uma transmutação genética provocada pelas vivências. Quer dizer que essa câmera, esse veículo, assume novas óticas, agregando às antigas, à medida que passa por suas experiências perceptivas.

Olho pra fora e não vejo nada. Fecho, retorno pra dentro, penso em um chá, vejo verde e vou pra cozinha. A geladeira vazia, a falta de apetite, o fogo do fogão acende e uma panela se acomoda. Depois de alguns minutos, vamos ferver. Uma música para ilustrar o dia: outra mania que me acompanha há tempos. Decido voltar ao quarto e abrir novamente a janela, vai que a minha aquarela agora quer pintar diferente. Mas que nada, nada de novo. O que me lembra o samba de Jorge:

Mas que nada
Sai da minha frente que eu quero passar
Pois o samba está animado
O que eu quero é sambar


A cozinha me chama para apagar o fogo. A água eu despejo numa caneca preta. Uma colher de prata deposita o verde dentro da caneca. A caneta na mão serve pra mexer o chá, mas deixo isso pra lá. Coloco um pano por cima e deixo a infusão maturar enquanto volto a pensar na janela. Penso na janela diversas vezes ao dia. Talvez por viver num apartamento, essas modernas caixas de fósforo que nos servem de moradia. Dentro da compactabilidade, reducionismo e objetividade dessas estruturas de habitação, penso na janela fechada do quarto da minha irmã como um elemento de fuga, um reduto para ilusão brotar sem aviso, um improviso do destino que eu reservei para mim.

Quanto às outras janelas daqui, mantenho todas abertas. Elas têm o privilégio de serem bem localizadas e mais reservadas que a do quarto da minha irmã. Essa última talvez então por estar fechada exerça tanta atração. Nessas horas me sinto uma chave em busca de fechaduras. Será que tenho algo a fazer aqui além de abrir portas? Bem, na dúvida volto à janela e me deparo com um belo gato branco.

O gato está ao lado de um carro estacionado no pátio do condomínio, entre duas árvores extremamente simpáticas. Completamente branco, corpo esguio e jeito misterioso. O gato não está só. Não está só miando, mas sim interagindo com dois passarinhos de peito amarelo que estão pousados sobre um fio e um galho. Cada um de um lado com o mesmo objetivo: se comunicar com o gato. O gato mia, não sei se por reclame ou convite. E conserva um ar de superioridade e sabedoria incomparável a de muitos animais. Há quem diga que os gatos são entidades mais evoluídas, espíritos que já superaram muitos karmas que ainda temos pela frente. Não sei, eu realmente não sei de muita coisa.

A situação é a seguinte: os passarinhos alçam vôo e dão rasantes sobre o corpo do gato, passando bem perto, distante o suficiente para evitar o contato físico. Não há contato físico porém algum contato provavelmente há. Possivelmente em outras dimensões, em campos onde nossos sentidos não alcançam a percepção. O gato insinua um gesto, talvez de protesto ou confirmação. Os passarinhos de peito amarelo continuam empenhados em sua missão. O gato diz não para a inércia e sim para os passos, e inicia seu elegante trajeto pelos próximos metros que o aguardam.

Os passarinhos o acompanham insistentemente, como querendo dizer algo, passar uma mensagem, efetuar uma comunicação. Outra possibilidade de sua intenção é o desejo de estabelecer contato com a divindade, que talvez o gato represente, e assimilar um pouco da sua energia, que de tão grande, irradiante e forte, impossibilite-os de se aproximar completamente a ponto de efetuar qualquer contato físico. Pensando nisso, volto à cozinha. Tão confuso quanto quando acordei. Seguro a caneca preta e começo a soprar o verde que chamei de chá. Depois do gole que vou dar, eu nunca mais serei o mesmo.


Um comentário:

  1. eu abri essa janela apenas uma vez. queria tirar o mofo e deixar que a luz daquela manhã de quinta disfarçasse um tom de angustia que eu sentia...

    ResponderExcluir


Creative Commons License