@palivre

segunda-feira, 28 de abril de 2008

conta outra #4


É POR ESSAS E OUTRAS QUE SIMPATIZO COM O EMPATE
imagem de autor desconhecido



São 23h20 em Natal, Rio Grande do Norte. Agora estou parado no trânsito, banco de trás do carro, pegando carona com um casal de amigos. O trecho é a Roberto Freire, uma das avenidas mais importantes da cidade. E o trânsito está engarrafado não apenas porque o futebol é um esporte popular, lucrativo e atrai multidões. Uma partida acabou de acabar e consagrou um tradicional time da cidade como vencedor do episódio. O que não foi suficiente para diluir o ódio de toda aquela gente que adora uma briga por “amor à camisa”. É claro que eles estão presentes, fazendo suas caretas, mantendo o costume de inventar inimigos na vitória ou na derrota.

Olho pra frente, tudo parado. Tudo que andamos: dez metros. No mesmo olhar capturo o trio, esbanjando eletricidade, com suas tipologias de néon e sua velocidade de tartaruga. Ao redor, uma caravana e uma cambada de gente vestindo a mesma camisa branca e preta. A música não é o axé, mas sim um daqueles subprodutos da moda que o axé lançou, com rimas pobres e melodias repetidas. É, o pior da Bahia continua trazendo alegria pra moçada daqui. O rapaz ao meu lado, já fora do carro, aproveita o engarrafamento pra dançar, comemorando a vitória do mais querido, um tal de ABC, seu time de coração. A avenida está congestionada com o aval das autoridades e o motivo é um jogo de futebol? Não, claro que não. O único motivo desse carnaval é o desrespeito que existe entre nós mesmos. "Se você não tá a fim de comemorar com a gente, o problema é seu!", esbraveja alguma voz desconhecida que conseguiu alcançar meu subconsciente. Capaz ser um reflexo do pensamento conjunto de todos os torcedores, como em reação à minha crítica que começava a se espalhar.

Já se passaram dez minutos e continuamos em ritmo de lesmas. Ali tem dois garotos se aproveitando do fuzuê e pedindo um trocadinho pra quem aparece no caminho. Aproximam-se de um carro, fazem cara de mau, querendo botar medo, mas não conseguem nada. Desaparecem da minha vista, dando lugar ao motorista de um carro vizinho que grita alguma coisa pra caminhonete da frente. O cara da caminhonete abre um isopor, pega duas latinhas e leva até ele. O motorista só queria umas cervejinhas pra curtição não acabar. Outros se satisfazem buzinando, apertando e soltando a buzina repetitivamente, freneticamente, alopradamente, como se assim pudessem aliviar uma vontade de gritar, de extravasar e exteriorizar o êxtase descomunal gerado pela vitória de um jogo. A buzina deve ter alguma relação bem estreita com a debilidade mental do homem. (Explico melhor esse ponto no próximo capítulo.)

Fico pensando no que faz tanta gente alimentar a indústria do futebol. Comprar camisa, comprar ingressos, passar duas horas sentado pra ver onze homens disputarem com outros onze o destino de uma bola solitária, feita de couro, que nasceu pra levar bico na bunda. Qual é a graça exatamente, ganhar? Mas ganhar o que: um motivo de usar a camisa do time esbanjando orgulho ou uma oportunidade de tirar onda com quem perde, celebrando a derrota alheia como se fosse a coisa mais divertida do mundo? Ou a graça é apenas ter um motivo pra beber, encontrar a galera e paquerar?

Não, não, nada disso. O que eles gostam são os gols e os dribles maravilhosos dos jogadores apaixonados pelo que fazem e são mestres na arte de dominar a bola. Mentira. Se eles gostassem mesmo disso, estariam assistindo algum reprise da copa de setenta ou coisa parecida, não por nostalgismo, mas sim pela mais sincera admiração ao espetáculo, e também porque a arte da bola é algo bastante diferente do que costuma acontecer na maior parte dos estádios de futebol. Tudo bem, isso não vem tanto ao caso. Por outro lado, devo admitir: todos merecem a liberdade de ir ao estádio, torcer, se orgulhar ou se matar porque o time perdeu uma decisão de campeonato.

A paixão que se torna doentia acaba se tornando um problema social. Quem tem o direito de interromper o fluxo de uma avenida tão movimentada e importante, utilizada por todos, para fazer uma festa, que nem todos fazem parte? Por justiça, ninguém. Mesmo assim, a avenida continua praticamente estagnada. É a consequência de uma mentalidade egoísta, onde o respeito ao próximo é encarado como romantismo barato. Olho pro lado e vejo um torcedor jogando mais uma lata de cerveja no chão. E tome lixo! Os incomodados que catem, ou esperem a limpeza pública passar, porque eles estão bem ocupados comemorando. E sujando. O clima tô-cagando-e-andando é generalizado e tomou conta do lugar. Perdoem o linguajar, mas a coisa definitivamente está fedendo por aqui.

Consulto o relógio e são 23h50. Demorou bastante para atravessarmos pouco mais de meio quilômetro. Acabamos de pegar um retorno, nos livramos da confusão, estamos quase de volta pra casa. Mas antes cruzamos com um carro quebrado no centro do meio fio. Provavelmente seu motorista perdeu a paciência com a música do trio, o engarrafamento gigantesco, os torcedores fanáticos e decidiu tentar atravessar antes do retorno, passando por cima do canteiro. O que não deu certo, obviamente. Minha dúvida é: será que ele torcia pra outro time?


2 comentários:

  1. na tv tava bem legal o jogo com a transmissão pedreira com saturação de cores 100000%. mas peguei esse engarrafamento otário e egoísta de muitos também. fique calmo, a copa da africa tá perto.

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  2. ainda pior que o futebol, é quando as ruas congestionam em são paulo por luta livre. não estou brincando... as estações de metro se tornam todas sé as 6 da tarde. essa foi umas das coisas que me encantou fora, não troco minha terra por nenhuma outra, mas lá, é só quando o time da cidade joga que se ve os jovens na rua em grupos. todos torcem pra esse time, não existem camisas, eles usam panos em volta do pescoço com a cor do time, no caso era azul, e também não gritam, mas cantam em coro o que eu acho devia ser um hino... quando alguém se aproxima se calam de forma tão eficaz, que eu nunca consegui chegar rápido e despercebida o bastante para entender o que cantavam.

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